A cidade cala-se numa apneia
nervosa de espera, cheira a terra e a beatas molhadas, deprimidas, usadas como
putas, acendem-se umas luzes ali, apagam-se outras mais à frente. As almas vão
levando as suas vidas metropolitanas empacotadas, enciclopédicas, tão tristes
que felizes, tão felizes que tristes, esquecidas logo que acontecidas
(ali um chichi, na outra janela do prédio cor
de rosa imundo um ovo a estrelar, queimou, além acaba-se os trabalhos de casa
para se ver a novela, aquela cortou-se a rapar as pernas, na outra o catarro de
um velho sozinho, daqueles que engomaram só a camisa branca de manga curta e se
esqueceram que a pele tinha mais rugas que a camisa, talvez ali uma sova de
marido bêbedo, talvez na outra o término barulhento e extasiado de uma queca
adúltera)
indiferentes aos relâmpagos que daqui a meia
dúzia de segundos antecipados só por mim vão acender a cidade com mais luz mas
com o mesmo terror patético das luzes de natal da paulista, o primeiro pingo
metálico na caleira do beiral e a certeza sorridente e inexorável da água.
Aqui a trovoada nasce do chão.
Tudo em São Paulo é meio que parido do chão de qualquer maneira, regurgitado,
cantado, cuspido, vomitado, rugido do chão. No céu diz-se que está deus e esse
com São Paulo não quer nada. Fê-lo, levou as mãos à cabeça, foda-se fiz merda,
armou-se desentendido e para ver se se redimia e se sossegava a consciência foi
ali adiante espremer-se em engenho, arte e corcovados celestes e fazer o Rio. A
jogada saiu-lhe bem, sem postal que lhe faça justiça, e por aqui foram-se
engalfinhando vermes prédios trepados uns por cima dos outros por esses montes
fora com a esperança de que, se suficientemente altos, talvez o céu se
incomodasse com a intrusão do espaço divino e concedesse a São Paulo alguma
contrariada atenção (os espigões da paulista estão só a tentar picar o cu a
deus).
Eu sempre tive medo de trovoadas.
Mãe, prende as persianas.
(aqui não há persianas, só
portadas metálicas bege, não necessariamente mais horríveis)
E agora descalça, calções, tão
descoberta quando descoberto se pode estar, mais descoberta ainda que isso,
nunca suficientemente descoberta, com vidro fosco não dá, e se dantes
Mãe, prende as persianas.
Agora abre persianas (ou portadas
metálicas, tanto faz), abre vidros e abre tudo, a água que entre (faz um
barulho simples e opaco quando cai uma gota nas madeiras do chão e eu gosto do
barulho porque não tem nem nenhuma metafísica, nem nenhuma emoção, nem nenhuma
suprema e iluminada teoria sobre os sempre estéreis destinos da humanidade, é
só aquele barulho, a gota bate no chão com maravilhoso determinismo gravítico,
o chão fica molhado naquele sítio específico e acabou-se a história).
Persianas, portadas, vidros, escancare-se tudo
que eu quero o choro dócil das folhas derrotadas à força pelo peso sádico da
água, quero o som descolante da borracha dos pneus a não pararem nas poças,
quero os passos daquelas uma ou duas pessoas que vão passar ou à pressa a
evitar a molha ou devagar conformadas com a molha, quero ouvir a embolia
tropeçada do rio relativamente limpo que se vai formar deste lado da rua para
ir acabar ali vinte metros mais abaixo no início da favela (coitados, até com
isto levam), quero os dias de segundos de sol branco, a cidade recortada pelos
dias de segundos de sol branco, branco do dentes do sorriso do diabo, quero
saber os cães calados de medo como eu quando pequena
Mãe, prende as persianas.
(Prende as persianas, acaba com
este vento a sacudi-las, manda os trovões parar, as mães não podem tudo?)
Eu pequena, embrião na placenta
de cobertores, eu quase nada porque os trovões demasiado barulho, olímpico,
tonítruo, demasiado grande, demasiado.
A água que entre, que estrague a madeira
(não pago pouco de renda). Não há mãe, nem persianas, nem medo, perde-se o medo
de umas coisas quando nos lixam outras, quem dera que o vidro abrisse mais,
ninguém tem medo de uma trovoada que vem do chão, aqui ninguém teria ainda que
viesse do céu, deus a fazer birra ou o diabo às gargalhadas e o ovo do prédio cor-de-rosa
imundo queimava na mesma, a outra cortava-se a rapar as pernas, aquela ia parar
ao hospital com a tareia, já lá vai e a ambulância se calhar passou aqui e não
parou nas poças nem no rio que acaba vinte metros mais abaixo na favela, os
dois adúlteros no prédio do fundo haviam de se vir com grunhidos de igual
feiura e frequência sonora, esta gente nasceu de cu virado para o raio que as
parta e os raios todos não têm como as partir porque esta gente não se assusta
nem por nada, trovoadas, gritarias, tiros e demais cagaçais aqui assentam que
nem luvas, a quem ainda se lembra ou se dá ao trabalho de os ouvir não oferecem
senão a paz de se saber o universo maravilhosa e rigorosamente do avesso,
quanto mais assusta o catarro mucoso e borbulhado do velho sozinho que a
histeria mimada dos trovões que, entretanto, a jeitos de consolo, já berram
impertinentes uns atrás dos outros.
(o diabo que se cuide, já que
deus está amuado)
Sara Frazão Monteiro