sábado, 31 de maio de 2014

passarelles

Da arquitectura completa.

“Fizémos, aqui, uma experiência socialista.” Lin(d)a Bo Bardi








sexta-feira, 22 de novembro de 2013

trovoada



A cidade cala-se numa apneia nervosa de espera, cheira a terra e a beatas molhadas, deprimidas, usadas como putas, acendem-se umas luzes ali, apagam-se outras mais à frente. As almas vão levando as suas vidas metropolitanas empacotadas, enciclopédicas, tão tristes que felizes, tão felizes que tristes, esquecidas logo que acontecidas

(ali um chichi, na outra janela do prédio cor de rosa imundo um ovo a estrelar, queimou, além acaba-se os trabalhos de casa para se ver a novela, aquela cortou-se a rapar as pernas, na outra o catarro de um velho sozinho, daqueles que engomaram só a camisa branca de manga curta e se esqueceram que a pele tinha mais rugas que a camisa, talvez ali uma sova de marido bêbedo, talvez na outra o término barulhento e extasiado de uma queca adúltera)

indiferentes aos relâmpagos que daqui a meia dúzia de segundos antecipados só por mim vão acender a cidade com mais luz mas com o mesmo terror patético das luzes de natal da paulista, o primeiro pingo metálico na caleira do beiral e a certeza sorridente e inexorável da água.

Aqui a trovoada nasce do chão. Tudo em São Paulo é meio que parido do chão de qualquer maneira, regurgitado, cantado, cuspido, vomitado, rugido do chão. No céu diz-se que está deus e esse com São Paulo não quer nada. Fê-lo, levou as mãos à cabeça, foda-se fiz merda, armou-se desentendido e para ver se se redimia e se sossegava a consciência foi ali adiante espremer-se em engenho, arte e corcovados celestes e fazer o Rio. A jogada saiu-lhe bem, sem postal que lhe faça justiça, e por aqui foram-se engalfinhando vermes prédios trepados uns por cima dos outros por esses montes fora com a esperança de que, se suficientemente altos, talvez o céu se incomodasse com a intrusão do espaço divino e concedesse a São Paulo alguma contrariada atenção (os espigões da paulista estão só a tentar picar o cu a deus).

Eu sempre tive medo de trovoadas.

Mãe, prende as persianas.

(aqui não há persianas, só portadas metálicas bege, não necessariamente mais horríveis)

E agora descalça, calções, tão descoberta quando descoberto se pode estar, mais descoberta ainda que isso, nunca suficientemente descoberta, com vidro fosco não dá, e se dantes

Mãe, prende as persianas.

Agora abre persianas (ou portadas metálicas, tanto faz), abre vidros e abre tudo, a água que entre (faz um barulho simples e opaco quando cai uma gota nas madeiras do chão e eu gosto do barulho porque não tem nem nenhuma metafísica, nem nenhuma emoção, nem nenhuma suprema e iluminada teoria sobre os sempre estéreis destinos da humanidade, é só aquele barulho, a gota bate no chão com maravilhoso determinismo gravítico, o chão fica molhado naquele sítio específico e acabou-se a história).
Persianas, portadas, vidros, escancare-se tudo que eu quero o choro dócil das folhas derrotadas à força pelo peso sádico da água, quero o som descolante da borracha dos pneus a não pararem nas poças, quero os passos daquelas uma ou duas pessoas que vão passar ou à pressa a evitar a molha ou devagar conformadas com a molha, quero ouvir a embolia tropeçada do rio relativamente limpo que se vai formar deste lado da rua para ir acabar ali vinte metros mais abaixo no início da favela (coitados, até com isto levam), quero os dias de segundos de sol branco, a cidade recortada pelos dias de segundos de sol branco, branco do dentes do sorriso do diabo, quero saber os cães calados de medo como eu quando pequena

Mãe, prende as persianas.

(Prende as persianas, acaba com este vento a sacudi-las, manda os trovões parar, as mães não podem tudo?)

Eu pequena, embrião na placenta de cobertores, eu quase nada porque os trovões demasiado barulho, olímpico, tonítruo, demasiado grande, demasiado.

A água que entre, que estrague a madeira (não pago pouco de renda). Não há mãe, nem persianas, nem medo, perde-se o medo de umas coisas quando nos lixam outras, quem dera que o vidro abrisse mais, ninguém tem medo de uma trovoada que vem do chão, aqui ninguém teria ainda que viesse do céu, deus a fazer birra ou o diabo às gargalhadas e o ovo do prédio cor-de-rosa imundo queimava na mesma, a outra cortava-se a rapar as pernas, aquela ia parar ao hospital com a tareia, já lá vai e a ambulância se calhar passou aqui e não parou nas poças nem no rio que acaba vinte metros mais abaixo na favela, os dois adúlteros no prédio do fundo haviam de se vir com grunhidos de igual feiura e frequência sonora, esta gente nasceu de cu virado para o raio que as parta e os raios todos não têm como as partir porque esta gente não se assusta nem por nada, trovoadas, gritarias, tiros e demais cagaçais aqui assentam que nem luvas, a quem ainda se lembra ou se dá ao trabalho de os ouvir não oferecem senão a paz de se saber o universo maravilhosa e rigorosamente do avesso, quanto mais assusta o catarro mucoso e borbulhado do velho sozinho que a histeria mimada dos trovões que, entretanto, a jeitos de consolo, já berram impertinentes uns atrás dos outros.

(o diabo que se cuide, já que deus está amuado)

Sara Frazão Monteiro